Imagine-se no papel de um cientista, buscando desvendar os segredos mais profundos da mente humana. Nesta busca, você quer entender como pessoas comuns podem ser levadas a cometer atos terríveis.
Embarque comigo nesta fascinante jornada pelo experimento de Stanley Milgram, uma história que explora a obediência à autoridade e as complexidades da psicologia humana.
A história por trás do experimento Milgram
O Holocausto foi um dos eventos mais sombrios e chocantes da história mundial, sendo o terceiro maior genocídio já registrado, deixando cicatrizes profundas na sociedade.
Entre 1941 e 1945, aproximadamente seis milhões de judeus foram assassinados pelos nazistas em uma ação brutal e desumana. Além dos judeus, outras minorias e grupos perseguidos também sofreram com a barbárie do regime nazista, como homossexuais, ciganos, testemunhas de Jeová e deficientes.
As atrocidades cometidas durante o Holocausto levantaram a inúmeras questões sobre a natureza humana. Como poderiam pessoas comuns, sem histórico de violência, serem levadas a participar de massacres e genocídios em grande escala?
O que motivava os cidadãos alemães e outros colaboradores a obedecerem a ordens que contrariavam sua própria moralidade?
Neste cenário, o mundo estava passando por uma série de mudanças políticas e sociais. A Guerra Fria estava em pleno desenvolvimento, e a luta entre o capitalismo e o comunismo dominava o cenário geopolítico. As cicatrizes da Segunda Guerra Mundial ainda eram recentes, e a busca por respostas sobre o Holocausto estava no auge.
Foi neste contexto conturbado que Stanley Milgram, um jovem psicólogo de origem judaica, decidiu investigar as razões que levavam pessoas a obedecer a ordens contrárias aos seus princípios.
Inspirado pelos julgamentos de Nuremberg, onde líderes nazistas foram julgados e condenados por seus crimes de guerra, Milgram questionou-se sobre o papel da obediência à autoridade na condução de tais atrocidades.
Milgram estava determinado a desvendar os mecanismos psicológicos por trás desse comportamento, buscando entender como indivíduos aparentemente normais poderiam ser persuadidos a participar de ações tão terríveis.
Com coragem e ousadia, ele lançou as bases para um dos mais notórios experimentos da psicologia social, cujos resultados abalariam o mundo científico e levariam a uma profunda reflexão sobre a obediência à autoridade e a natureza humana.
Quem foi Stanley Milgram?
Stanley Milgram foi um psicólogo social norte-americano, nascido em 1933, em uma família de imigrantes judeus vindos da Europa Oriental. Desde cedo, demonstrou interesse em entender os aspectos obscuros da psicologia humana.
Ele iniciou seus estudos em psicologia na Universidade de Queens, onde se graduou em 1954. Posteriormente, ingressou na Universidade de Harvard para cursar o doutorado em psicologia social, concluindo-o em 1960, sob orientação de Gordon Allport, um dos grandes nomes da área.
Durante sua vida acadêmica, Milgram teve contato com diversas teorias e correntes de pensamento, o que influenciou suas pesquisas.
O experimento da obediência à autoridade, que lhe trouxe fama, foi conduzido em 1961, um ano após receber seu Ph.D.
Em um contexto pós-Segunda Guerra Mundial e influenciado pelos julgamentos de Nuremberg, Milgram estava profundamente interessado em entender como pessoas comuns poderiam ser levadas a cometer atos extremos de violência e crueldade sob o comando de autoridades.
Ao longo de sua carreira, Stanley Milgram desenvolveu outros estudos relevantes, como a teoria do “mundo pequeno” (conhecida também como “seis graus de separação”), que busca entender como pessoas desconhecidas estão conectadas entre si.
Apesar de suas contribuições para a psicologia, foi o experimento de obediência à autoridade que solidificou seu legado no campo científico e na história.
Milgram lecionou em várias universidades, como Harvard e Yale, sempre se dedicando à pesquisa e ao ensino. Ele faleceu em 1984, aos 51 anos, deixando um importante legado para o estudo da psicologia e do comportamento humano.
O experimento de Milgram
O objetivo do experimento de Milgram era medir até que ponto os participantes obedeceriam às ordens de uma autoridade, mesmo que isso causasse sofrimento a terceiros. Assim, ele conseguiria:
- Entender até que ponto as pessoas iriam obedecer a uma instrução mesmo que ela envolvesse prejudicar outra pessoa;
- Conhecer os limites e o quão facilmente pessoas comuns poderiam ser influenciadas a cometer atrocidades.
Para realizar seu experimento, Milgram recrutou voluntários através de anúncios em jornais locais, que ofereciam uma compensação de US$ 4,50 pela participação.
Os voluntários eram homens com idades entre 20 e 50 anos, com diferentes níveis de escolaridade e ocupações diversas. No total, 40 participantes foram envolvidos no estudo original.
Em seu laboratório, Milgram colocou os voluntários diante de uma situação extrema. Eles deveriam aplicar choques elétricos em outra pessoa, caso ela errasse as respostas de um teste de memória.
O que Milgram não contou aos participantes é que não haviam choques de verdade, e que o “aluno”, na verdade, era um ator que erraria as perguntas propositalmente.
Ao longo do experimento, a intensidade dos choques aumentava progressivamente, e o “aluno” começava a gritar de dor, implorar por ajuda e, eventualmente, ficar em silêncio para simular um desmaio.
Durante o processo, alguns participantes manifestaram desconforto e ansiedade, chegando a questionar a continuidade do experimento. No entanto, o pesquisador no papel de autoridade os instruía a prosseguir, afirmando que assumiria toda a responsabilidade.
Os resultados foram chocantes: 65% dos participantes aplicaram o choque máximo de 450 volts, mesmo ouvindo gritos de dor do aluno.
Alguns voluntários chegaram a rir nervosamente ou a tremer, enquanto outros tiveram crises de choro ou se mostraram extremamente perturbados.
Com o experimento, Milgram descobriu que a obediência à autoridade é um poderoso mecanismo que pode levar as pessoas a agir de maneira inesperada e pouco compreensível.
No experimento, a autoridade manipulou os participantes (professores) de tal maneira que eles se viram impelidos a obedecer, como se não tivessem alternativa, mesmo contrariando seus valores morais.
Os resultados geraram um profundo debate sobre a natureza humana e a capacidade das pessoas de cometer atos terríveis sob o comando de autoridades.
A pesquisa de Milgram foi documentada como “Estudo comportamental sobre obediência” em 1963 no Journal of Abnormal and Social Psychology.
Abordagem da Autoridade Segundo Milgram
Milgram analisou o comportamento dos indivíduos em seu estudo e propôs que, em contextos sociais, as pessoas tendem a apresentar dois tipos distintos de comportamento:
- Estado autônomo: Neste estado, os indivíduos tomam suas próprias decisões e assumem as consequências de suas ações.
- Estado de representante: Aqui, as pessoas deixam que outros tomem as decisões por elas e transferem a responsabilidade pelos resultados a quem dá as instruções. Em outras palavras, atuam como representantes da vontade alheia.
De acordo com Milgram, dois elementos precisam estar presentes para que alguém entre no estado de representante:
a) A pessoa que dá as ordens precisa ser vista como competente para orientar o comportamento alheio, ou seja, é considerada legítima.
b) Quem recebe as ordens deve acreditar que a autoridade assumirá a responsabilidade pelas consequências.
A abordagem da autoridade propõe que os indivíduos obedecerão a uma figura de autoridade se acreditarem que ela se responsabilizará pelos desdobramentos de suas ações. Essa teoria encontra respaldo em alguns aspectos dos resultados obtidos por Milgram.
Por exemplo, quando os participantes eram lembrados de que eram responsáveis por suas ações, quase todos se recusavam a obedecer.
Em contrapartida, muitos daqueles que se negavam a continuar o experimento mudavam de ideia quando o pesquisador afirmava que assumiria a responsabilidade pelas consequências.
Adaptações e variações experimentais de Milgram
O experimento de Milgram foi conduzido diversas vezes, com Milgram (1965) modificando o procedimento básico (alterando a variável independente). Dessa forma, ele conseguiu identificar os fatores que influenciavam a obediência (a variável dependente).
A obediência foi avaliada com base no número de participantes que aplicaram choques até o limite de 450 volts (65% no estudo original). No total, 636 participantes foram testados em 18 diferentes adaptações experimentais.
Uniforme
No estudo original, o experimentador usava um jaleco cinza como símbolo de autoridade (um tipo de uniforme). Milgram fez uma variação em que o pesquisador recebia uma ligação telefônica no início do procedimento.
Um “cidadão comum” (um cúmplice) vestido com roupas comuns assumia o papel do experimentador em vez de usar o jaleco. A obediência diminuiu para 20%.
Mudança de local
O experimento foi transferido para um prédio de escritórios em mau estado, em vez da prestigiosa Universidade de Yale. A obediência reduziu-se para 47,5%. Isso indica que o status do local afeta a obediência.
Condição com dois “professores”
Quando os participantes podiam instruir um assistente (cúmplice) a pressionar os botões, 92,5% aplicaram choques até o máximo de 450 volts.
Com menor responsabilidade pessoal, a obediência aumenta. Isso se relaciona com a Teoria da Agência de Milgram.
Condição de proximidade forçada
O “professor” precisava pressionar a mão do “aluno” contra uma placa de choque quando este se recusava a continuar após 150 volts. A obediência caiu para 30%.
O participante não está mais isolado das consequências de suas ações.
Condição de apoio social
Outros dois participantes (cúmplices) atuavam como “professores”, mas se recusavam a obedecer. O cúmplice 1 parou em 150 volts e o cúmplice 2 em 210 volts.
A presença de outros desobedecendo à figura de autoridade diminuiu a obediência para 10%.
Condição com experimentador ausente
Resistir às ordens de uma figura de autoridade é mais fácil quando ela não está presente. Quando o experimentador dava instruções e comandava o “professor” por telefone de outra sala, a obediência diminuiu para 20,5%.
Muitos participantes trapacearam, ignorando os choques ou aplicando voltagens menores do que as orientadas pelo experimentador. A proximidade de figuras de autoridade afeta a obediência.
O que isso significa?
Uma analogia útil para entender o experimento de Milgram é uma panela de pressão. Imagine que a obediência à autoridade seja o calor aplicado à panela, enquanto a resistência individual seja a válvula de escape. Se a pressão interna (obediência) aumenta e a válvula (resistência) não consegue liberar a pressão, a panela pode explodir (comportamento destrutivo).
Na prática, este comportamento não ocorre somente em casos extremos, mas também em nosso cotidiano!
No ambiente de trabalho, muitas vezes, os funcionários de uma empresa obedecem a ordens superiores sem questionar, mesmo que isso vá contra seus valores pessoais ou seja oposto ao que acreditam ser o certo. Um exemplo disso são os escândalos corporativos, como o caso Enron, onde funcionários foram levados a cometer fraudes e irregularidades por pressão da liderança.
No contexto educacional, alunos podem seguir as normas, diretrizes ou vieses estabelecidos por professores ou administradores sem questionar a sua validade ou justificativa. Um exemplo seria a aceitação cega de ideias e conceitos apresentados pelos educadores, sem questionar sua procedência, relevância ou aplicabilidade no mundo real.
O apelo à autoridade em ações de marketing e publicidade
O apelo à autoridade também é amplamente utilizado no marketing e na publicidade.
Empresas e marcas constroem campanhas publicitárias com o objetivo de criar uma imagem de autoridade no mercado, persuadindo os consumidores a acreditarem que seus produtos e serviços são os melhores. Um exemplo clássico disso é a presença de celebridades em comerciais e anúncios, em que sua imagem e fama são usadas como uma forma de autoridade para influenciar o público a consumir determinado produto.
Outra tática de marketing que explora o apelo à autoridade é a utilização de profissionais renomados ou especialistas para endossar produtos e serviços. Um exemplo seria a promoção de produtos de saúde e bem-estar com a recomendação de médicos e nutricionistas. Nesses casos, a autoridade desses profissionais é usada para persuadir os consumidores de que o produto é seguro, eficaz e benéfico.
Contudo, o experimento de Milgram nos faz refletir sobre a maneira como a obediência à autoridade afeta nosso comportamento e nossas decisões, nos levando a agir de maneira impensada e impulsiva na realização de ações que muitas vezes podem ser contrárias aos nossos valores e princípios.
O que dizem os especialistas?
O psicólogo Philip Zimbardo, que realizou o famoso experimento da prisão de Stanford, afirmou:
“A maioria de nós pode ser levada a fazer coisas terríveis quando somos colocados em ambientes tóxicos e manipulados por autoridades inescrupulosas.”
Esse experimento, realizado na década de 1970, demonstrou como pessoas comuns, quando colocadas em situações extremas, podem adotar comportamentos cruéis e desumanos.
Outro estudioso importante no campo da conformidade é Solomon Asch, que realizou experimentos sobre pressão social. Ele disse:
“A tendência de concordar com o grupo é tão forte que pode levar os indivíduos a negar a evidência de seus próprios sentidos.”
O experimento de Asch evidenciou como a pressão do grupo pode levar pessoas a concordar com opiniões ou ações erradas, mesmo quando elas têm consciência de que estão equivocadas.
Nos últimos anos, vários outros especialistas abordaram o tema da obediência à autoridade e conformidade social, contribuindo com novas perspectivas e aplicações em diferentes contextos.
A psicóloga social e professora de ética empresarial, Ann Tenbrunsel, destaca a importância da consciência ética nas organizações e como a obediência cega às autoridades pode levar a comportamentos antiéticos.
Em seu livro “Blind Spots“, Ann Tenbrunsel e Max Bazerman afirmam que os indivíduos tendem a superestimar seu próprio comportamento ético e subestimar as pressões situacionais que podem levá-los a agir de maneira antiética. Os autores sugerem que, para promover um ambiente ético, as organizações devem incentivar a reflexão crítica e a responsabilidade individual.
As lições aprendidas com o experimento de Milgram e os estudos subsequentes de outros especialistas nos ajudam a compreender como a obediência à autoridade e a pressão social podem influenciar nosso comportamento. Ao reconhecer esses mecanismos, somos capazes de tomar decisões mais conscientes e responsáveis, evitando que sejamos influenciados negativamente por autoridades ou pelo grupo.
Viés na Amostra de Milgram?
Os participantes do estudo de Milgram eram todos homens. Será que os resultados podem ser aplicados às mulheres?
O estudo de Milgram não pode ser considerado representativo da população americana, pois a amostra foi selecionada por si mesma. Isso aconteceu porque os participantes se envolveram no estudo ao escolher responder a um anúncio de jornal (autoseleção). Eles também podem apresentar uma “personalidade voluntária” típica, pois nem todos os leitores do jornal responderam, então talvez esse tipo de personalidade seja necessária para tal ação.
No entanto, um total de 636 participantes foram testados em 18 experimentos distintos em toda a região de New Haven, que foi considerada razoavelmente representativa de uma cidade americana típica.
Os resultados de Milgram foram replicados em diversas culturas e, na maioria das vezes, levaram às mesmas conclusões do estudo original, em alguns casos, mostraram taxas de obediência ainda mais elevadas.
Porém, Smith e Bond (1998) observam que, exceto na Jordânia (Shanab & Yahya, 1978), a maioria desses estudos foi conduzida em culturas ocidentais industrializadas, e devemos ser cautelosos antes de afirmar que uma característica universal do comportamento humano foi identificada.
Referências
Asch, S. E. (1956). Studies of independence and conformity: I. A minority of one against a unanimous majority. Psychological Monographs: General and Applied, 70(9), 1-70.
Blass, T. (2004). O Homem Que Chocou o Mundo: A Vida e Legado de Stanley Milgram. São Paulo: Editora Cultrix.
Haney, C., Banks, W. C., & Zimbardo, P. G. (1973). Interpersonal dynamics in a simulated prison. International Journal of Criminology and Penology, 1(1), 69-97.
Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371-378.
Perry, G. (2013). Behind the Shock Machine: The Untold Story of the Notorious Milgram Psychology Experiments. New York: The New Press.
Smith, PB, & Bond, MH (1998). Psicologia social entre culturas (2ª edição) . Prentice Hall.
Tenbrunsel, A. E., & Bazerman, M. H. (2011). Blind Spots: Why We Fail to Do What’s Right and What to Do about It. Princeton: Princeton University Press.
Zimbardo, P. G. (2007). O Efeito Lúcifer: O lado negro da natureza humana. Rio de Janeiro: Record.
Zimbardo, P. G., Haney, C., & Banks, W. C. (2007). O Experimento da Prisão de Stanford. In P. G. Zimbardo, O Efeito Lúcifer: O lado negro da natureza humana (pp. 113-196). Rio de Janeiro: Record.